Nos últimos dez anos, o Brasil experimentou uma significativa expansão de formas associativas de produção habitacional, impulsionadas pela criação de uma política federal de financiamento direto a associações de famílias interessadas em autogerir seus próprios empreendimentos. Tal política teve início com o Programa Crédito Solidário em 2004, seguido, a partir de 2009, pelo Programa Minha Casa Minha Vida Entidades. Para analisar essa experiência, a Fundação de Direitos Humanos Bento Rubião, a ARCHE Consultoria, Planejamento e Projetos e o Observatório das Metrópoles promovem o lançamento do livro “Produção Social da Moradia no Brasil: panorama recente e trilhas para práticas autogestionárias” — um estudo inédito sobre as práticas associativas de moradia no país, a partir da análise de temas como tecnologias de gestão participativa, habitação de interesse social, entre outros.
O livro tem como base uma pesquisa exploratória em cinco estados do país (Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Pernambuco), cujo ponto de partida foi a busca do caráter inovador das experiências de habitação autogestionária, seja no âmbito dos projetos arquitetônicos-urbanísticos, das tecnologias de gestão participativa ou, ainda, das tecnologias construtivas. O estudo analisa ainda temas como tecnologia social, economia solidária e habitação de interesse social.
“Produção Social da Moradia no Brasil” é uma realização da Fundação CDDH Bento Rubião e da ARCHE Consultoria, Planejamento e Projetos, sendo assinado por Elsa Burguière, Flávio Henrique Ghilardi, João Paulo Oliveira Huguenin, Sandra Kokudai e Valerio da Silva.
A publicação é resultado de uma pesquisa realizada no âmbito do projeto Rede MORAR/TS - Desenvolvimento de Tecnologia Social para construção, recuperação, manutenção e uso sustentável de moradias, especialmente habitação de interesse social, com apoio da FINEP. A coordenação geral da Rede MORAR foi do profº Luiz Carlos Pinto da S. Filho (UFRGS), sendo que o Núcleo Rio de Janeiro contou com a coordenação de Adauto Lúcio Cardoso e Luciana Corrêa do Lago, professores do IPPUR/UFRJ e integrantes da Rede INCT Observatório das Metrópoles.
O livro contou ainda com apoio da Caixa Econômica Federal, da Finep, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ) e da Federação Nacional de Arquitetos e Urbanistas (FNA).
Segundo a professora Luciana Corrêa do Lago, que assina o Prefácio, “Produção Social da Moradia no Brasil” privilegia a diversidade das experiências associativas, tecendo as análises a partir das diferenças dos contextos urbanos, como por exemplo aqueles em áreas centrais e periféricas. Além disso, outro ponto importante é a estratégia metodológica da pesquisa qualitativa, na qual se fomentou a troca de saberes entre os agentes locais envolvidos nas experiências, por meio de oficinas estruturadas para trazer à tona os avanços e as barreiras ao caráter inovador dos projetos.
“Este livro também buscou apontar possíveis desdobramentos dos empreendimentos coletivos autogeridos, na direção de práticas econômicas solidárias que articulem formas associativas de trabalho com a produção de cidades democráticas e igualitárias”, aponta Luciana Lago.
Para Jeferson Roselo Mota Salazar, presidente da Federação Nacional de Arquitetos e Urbanistas (FNA), a maior contribuição do livro é retirar o manto de invisibilidade que cobre a produção de moradia autogestionária no Brasil a partir, especialmente, das iniciativas populares, mostrando que há outras possibilidades de produzir habitação de qualidade.
“Essa publicação também abre um campo para o reconhecimento de soluções inovadoras no âmbito do direito à cidade e à moradia digna a partir de culturas locais, o que significa valorizar a produção do conhecimento popular, forjado nas suas dificuldades, necessidades, capacidade de organização e, acima de tudo, na solidariedade. Acredito que estes elementos, presentes nas experiências autogestionárias, são fermentos de uma nova cultura, na qual a apropriação do espaço construído coletivamente tem um forte significado de inserção cidadã e de pertencimento, o que não ocorre nos demais programas habitacionais”, aponta Salazar.
LANÇAMENTO
O lançamento do livro “Produção Social da Moradia no Brasil: panorama recente e trilhas para práticas autogestionárias” acontecerá no dia 27 de dezembro de 2016, às 17h, na sede da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA). Endereço: Av. Venezuela, nº 131, sala 811 a 815, bairro da Saúde, Rio de Janeiro.
PANORAMA DA AUTOGESTÃO DA PRODUÇÃO HABITACIONAL
Uma primeira visada panorâmica sobre a produção habitacional recente, no Brasil, por meio de entidades da sociedade civil, suscita algumas indagações sobre as tendências que estão postas pelo aumento no volume de recursos públicos investidos. Desde 2003 constata-se um aumento no montante de despesas do governo federal gastas em programas criados para produção de novas moradias através de entidades da sociedade civil – iniciando-se com o programa Crédito Solidário, passando pelo Produção Social da Moradia e, atualmente, com o Minha Casa Minha Vida – Entidades. A partir desse cenário, o livro “Produção Social da Moradia no Brasil” coloca duas questões: qual o porte dos empreendimentos construídos e em quais localidades do país são empreendidos esse novo tipo de moradia?
Para aportar algumas pistas que possam responder a tais questões, foram analisados os dados de contratação do MCMV – Entidades, que até o momento configura-se como o programa federal que contratou o maior volume de recursos para a produção habitacional por meio de entidades da sociedade civil. A partir de dados fornecidos pelo agente operador do programa (Caixa Econômica Federal), a publicação apresenta brevemente algumas análises sobre dois aspectos que envolvem o universo de unidades contratadas: a) o aumento da escala dos projetos; e b) a concentração da produção em determinados localidades.
No âmbito do MCMV – Entidades foram contratadas 52.912 unidades habitacionais até janeiro de 2015. Deste total, existem diferentes portes de projetos, conforme é possível visualizar na tabela 1.
A média de unidades contratada por projeto é de 207. Dos 256 projetos contratados no Brasil, 173 tinham até 200 unidades – número próximo à média por projeto –, ou seja, 67% do total. Aqueles de maior porte – acima da média de contratação por projeto – conformavam um terço de projetos restantes, sendo 38 entre 201 e 300 unidades, 30 entre 301 e 500 unidades e 15 acima de 500 unidades (até o maior projeto de 1.760 unidades contratadas). O gráfico 1 apresenta visualmente essa distribuição.
Se os projetos de maior porte tem o menor número de contratados, o mesmo não ocorre quanto ao número de unidades habitacionais para produção. Em realidade, os percentuais se invertem. Das 52.912 unidades contratadas até janeiro de 2015, 36.522 unidades encontravam-se em projetos com mais de 200 unidades, conformando 69% do total, conforme se visualiza no gráfico 2. Neste universo, os projetos com mais de 500 unidades concentram o maior percentual de unidades – 26% daquelas contratadas –, sendo somente 6% do total de projetos. Dentre os de menor porte, aqueles entre 51 e 100 unidades, por exemplo, que tinham o maior número de projetos contratados (40), respondem por somente 6% das unidades habitacionais.
Pode-se constatar, portanto, uma tendência à produção em grandes conjuntos no MCMV – Entidades. A produção em menor escala também está presente, apesar de ser menos expressiva no volume de moradias a serem produzidas. A questão que esta publicação pretende colocar para reflexão envolve algumas implicações urbanas e de desenvolvimento do projeto nos conjuntos de maior escala, destacando algumas a seguir.
O aumento na escala implica, também, o aumento no número de famílias e, bem provavelmente, no aumento da diversidade de arranjos familiares e de formas de organização social e de inserção produtiva das famílias. Assim, a questão conforma-se em como os grandes projetos podem trabalhar a diversidade de tipologias para os diversos arranjos familiares, assim como os espaços coletivos e sócio-produtivos para atender as diversas formas de organização social e laboral.
A gestão de uma grande obra implica em processos específicos para a tomada de decisões e prestação de contas. O desafio, aqui, parece estar em como se organizar processos de gestão e prestação de contas nesses grandes projetos.
Construir grandes conjuntos implica não só a produção de unidades habitacionais, mas, também, a produção de uma “nova” cidade. Assim, os grandes conjuntos tem o desafio de articular a demanda por equipamentos sociais (por transporte e serviços, por exemplo) e o deslocamento de um grande contingente de pessoas pela cidade.
Outro ponto de destaque é a contratação dos projetos habitacionais do Minha Casa Minha Vida – Entidades, que tem ocorrido em volumes diferenciados entre as unidades da federação. O gráfico 3, a seguir, apresenta o número de unidades em cada um dos estados. Pode-se constatar que três concentram mais da metade de todo o montante do programa, quais sejam: São Paulo (27%), Rio Grande do Sul (17%) e Goiás (15%). Já no Acre, Amapá, Distrito Federal e Espírito Santo ainda não houve (até janeiro de 2015) a contratação de unidades habitacionais do programa.
TEMAS DO LIVRO
Processos Participativos em Projetos
A autogestão habitacional significa a capacidade de um grupo gerir todos os processos necessários para produção de sua moradia, desde a conquista da terra até a construção das unidades habitacionais, passando pela realização dos projetos de arquitetura e urbanismo.
Vimos que em muitos projetos dentro do MCMV-Entidades a participação nas decisões sobre a arquitetura e o urbanismo é limitada ou mesmo inexistente. Isso acaba sendo uma contradição com o conceito da autogestão, pois exclui as famílias envolvidas nos processos decisórios, deixando a responsabilidade para um pequeno grupo.
Percebemos que nos locais onde há um lastro na produção autogerida da habitação, notadamente São Paulo, a participação na elaboração dos projetos acontece de forma mais constante. Acreditamos que isso esteja relacionado a duas questões fundamentais, primeiro, as associações são ligadas a movimentos que defendem essa prática e, juntamente a isso, os núcleos de assessoria técnica possuem a cultura de envolver a participação no ato projetual.
A participação do grupo envolvido no processo de produção autogerida da habitação é uma oportunidade de oferecer a eles opções de escolhas, ampliar o repertório arquitetônico e urbanístico, mas, principalmente, uma maneira de fazer com que compreendam seus direitos como cidadãos e como reivindicá-los.
Cada grupo de assessoria técnica desenvolve sua própria metodologia projetual, que se adapta às realidades de cada grupo. Essa participação pode ocorrer em vários níveis, desde modelos a serem escolhidos até a interpretação técnica de desenhos realizados.
Autogestão e Economia Solidária
Por Felipe Drago (Rede de Comunidades Autogestionárias)
Entendemos que a autogestão, isto é, a situação social na qual as decisões são tomadas pelas mesmas pessoas que executam as tarefas, só é possível após o capitalismo. Utilizamos o conceito de práticas autogestionárias para definir as práticas de construção de territórios nos quais se reduz a distância entre quem executa e quem faz. Este “conceito-modelo” consiste na utilização de terras públicas para a construção de territórios abertos nos quais se possa circular livremente sem cercas, preservando a intimidade familiar e criando estruturas para a vida comunitária coletiva.
As estruturas são criadas para atender aos autoprogramas, que são programas criados pelos próprios moradores para adaptar as práticas socialmente adquiridas à vida coletiva, especialmente no que diz respeito à produção e apropriação dos bens comuns. As estruturas também devem garantir uma economia mínima para que todas as necessidades para além da moradia estejam garantidas e a sobrevivência não seja uma urgência que determina o cotidiano dos moradores.
Faça o download do livro “Produção Social de Moradia no Brasil”.